Autor: Gustavo Faraon (publicado pela Bookwire Brasil em
01º.08.2018)
Lembram quando o E-book vinha chegando por aqui? Tudo era
dúvida. Ele trazia consigo um certo temor de transformação, que para alguns
também era uma esperança de refundação completa de tudo. E lembram das
narrativas criadas, dos prognósticos, das razões pelas quais se deveria apostar
nele? Primeiro, era o apocalipse tecnológico: os livros
digitais iriam obliterar os físicos em pouco tempo.
Depois, embora não tenha ocorrido uma aniquilação total,
as apostas davam conta de que rápida e inevitavelmente ambos se equiparariam em
termos de vendas, e não estar ligado no digital era abrir mão de metade de
tudo. Quando se percebeu que não era bem assim, viu-se nos
índices do mercado norte-americano uma perspectiva sedutora: mesmo que digital e
físico não tivessem uma representatividade equiparada, era certo ao menos que
uma fatia muito substancial do faturamento seria oriunda do E-book.
Por fim, quando ficou evidente que os índices daqui
dificilmente chegariam nesse patamar (e ainda estamos longe dele), um ar de
aceitação resignada sobreveio. Enfim, o futurismo é mesmo um lance
complicado. Em se tratando de E-book, fui desde sempre um entusiasta
de primeira hora, a encarar o livro digital como opção maravilhosa: mais barato,
mais prático, potencialmente onipresente, sem estoque nem frete.
Mas à medida que a coisa não avançava conforme o
esperado, ou conforme o desejado, nunca faltaram a todos nós teorias e hipóteses
para explicar essa demora. Mercadológicas. Estratégicas. Tecnológicas. Eu, como
todo mundo, sempre tive minha teoria de estimação. A diferença é que ela era uma
teoria nem tanto a sério, era muito mais uma provocação que eu desejava ver
desfeita o quanto antes. Hoje, olhando em volta, ela segue válida. O Brasil já
tem mais smartphones ativos do que habitantes. Um sistema de distribuição de
E-book que funciona muito bem. E então, o que pode estar faltando para o E-book
cumprir por aqui o seu gigantesco potencial?
Minha teoria – pessimista e um tanto cínica, eu confesso
– sempre foi calcada na mais cretina obviedade: um E-book não serve para presente, não pode ser
embrulhado em papel colorido e fita brilhante, não pode ser carregado a tiracolo
a um aniversário ou ao amigo secreto da firma. Um E-book não serve para encher
estante, para deixar um ambiente mais aconchegante, mais descolado ou com ar
cult. Um E-book não serve como peça decorativa de mesa de centro. Ele não serve
para impressionar. Um E-book não serve para apoio, para peso e nem sequer para
esconder um bilhete, dinheiro ou um segredo, como nos filmes de espionagem. Um
E-book tampouco é fotogênico. Pior, um E-book é tão discreto que nem sequer é
capaz de identificar publicamente o leitor como um leitor.
Um E-book, sempre pensei, “só serve” para ler.Tem. Que. Ler. E isso, mesmo a mais avançada tecnologia que tanto
enriqueceu o E-book de possibilidades, ainda não se viu capaz de
contornar. E aí que está: de acordo com dados de 2016, apenas 8% dos brasileiros
são considerados alfabetizados proficientes, o nível mais avançado de
alfabetismo em um índice chamado Inaf (Indicador de Alfabetismo Funcional): isto
é, conseguem ler e compreender informações mais complexas, entre outras
habilidades. Outros 23% estão posicionados dentro do grupo de alfabetismo
intermediário. Isso significa que quase sete em cada dez brasileiros, caso
tentassem aprender a usar instrumentos de corte utilizando apenas instruções
escritas em bom português, provavelmente acabariam gravemente
feridos.
Gracejos hiperbólicos à parte, o cenário é
triste. Temos na nossa mão um não-objeto maravilhoso, produto
cultural e tecnológico que conseguiu incrementar o nosso querido livro em preço
(menor), disponibilidade (maior), acessibilidade (muito maior) e tantos outros
fatores. Mas não conseguimos ensinar as pessoas a ler.
Para mim, depois de vencidas tantas barreiras complexas
no caminho do livro digital, resta cristalizado, bem na nossa cara, quase como
um deboche, o mais básico desafio, o mais importante e urgente. Acho de verdade que o trabalho que se faz com o E-book no
Brasil é bom, é mesmo muito bom. A questão é que ele enquanto produto requer,
para ser consumido e desfrutado, uma habilidade que a nossa população, em sua
maioria, não domina.
E não dá para ficar esperando que a tecnologia, sozinha,
resolva o nosso problema, transformando o livro digital em uma outra coisa que
prescinda de qualquer letramento. Nesse caso hipotético, pode até ser que juntos
vendamos muitos e muitos E-books, mas seria um péssimo final de história em que
viveríamos todos felizes e analfabetos para sempre.
Gustavo Faraon é jornalista, mestre em
comunicação pela UFRGS. Em 2009 fundou, em Porto Alegre, a Editora Dublinense.
Foi um dos vencedores do Prêmio jovens Talentos da Indústria do Livro 2016.
Apesar de adorar e colecionar edições bonitas, lê quase sempre através do
celular.
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