segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

CHEGOU A BIOGRAFIA DE MARTIM LUTERO

Martin N. Dreher

De Luder a Lutero - Uma biografia

Elaborar a biografia do reformador Martim Lutero, sendo brasileiro e residindo no hemisfério sul do planeta, pode parecer um empreendimento um tanto temerário. Você está longe das grandes bibliotecas e dos grandes centros de pesquisa da história do século XVI. É verdade que, no século XXI, há a possibilidade de conectar-se via rede mundial de computadores e em poucos instantes ter acesso a bibliotecas e a centros de pesquisa. Por outro lado, faltam o contato direto, o cheiro dos arquivos, a proximidade geográfica com locais e localidades, sentir geografia, relevos, depressões, vale de rios, lagos. Por isso o que vai descrito e escrito nas páginas que seguem é uma tentativa de introduzir o leitor não europeu em contextos, cheiros, seres humanos distantes dos surenhos.
     Quem escreve, e principalmente o historiador que escreve e que não pode negar que também é teólogo e, mais especificamente, luterano, deve confessar que se aproxima da tarefa com preconceitos, com conceitos prévios, com os quais estará lutando ao longo de todo o seu texto. Nasci e cresci em família luterana, descendendo de teólogos luteranos, de professores, de artesãos, de camponeses, sempre luteranos. Fui formado em seminário menor luterano e em faculdade de teologia luterana, fiz pós-graduação, orientado por luterano, lecionei em centro de formação luterano. Cedo ouvi falar de Lutero, pois dele recebera o primeiro de meus prenomes, pois nascera em 10 de novembro, data do nascimento do reformador. Ter e reconhecer preconceitos, porém, auxilia o historiador a buscar imparcialidade na parcialidade. É o que pretendemos.
     Quando li a biografia escrita por Heiko A. Oberman, Luther: Mensch zwischen Gott und Teufel (Lutero: Pessoa entre Deus e o Diabo), tomei conhecimento da grafia “Luder” para o sobrenome do estudante que se matriculara para estudo na Universidade de Erfurt. Em meu dialeto legado por imigrantes alemães que se estabeleceram no Rio Grande do Sul a partir de 1824, “Luder” podia designar, em sua forma mais amena, o “vagabundo”, mas também a pessoa de conduta altamente reprovável. Foi a partir desse meu pano de fundo linguístico que comecei a ler Lutero de forma mais intensa e a procurar entender existencialmente o que significara para ele a descoberta do Deus crucificado, principalmente depois de encontrar em Bartolomé de las Casas a afirmação de que aquilo que os espanhóis estavam fazendo em relação aos indígenas era pior do que a heresia dos luteranos, pois esses não negariam o Deus crucificado. De fato, na busca por um Deus misericordioso, Lutero percebeu no Cristo crucificado o rosto de Deus voltado para o ser humano e para a criação. Não há outra forma de reconhecermos quem e como é Deus a não ser naquilo que Deus nos mostrou, revelou a seu respeito, ao contrário do que ele é na ignomínia, no escândalo, na morte dolorosa e injusta do Cristo crucificado. Deus tem o rosto do crucificado. O Cristo crucificado é o rosto de Deus voltado para o ser humano e para a criação, que clamam e gemem por redenção. Não reconhecer Deus na cruz e no sofrimento é não saber nada do evangelho. Saber desse Deus é poder olhar para onde ele olha, para baixo, e ver o que ele vê: sofrimento, morte, ignomínia, cruz e libertar quem se encontra nessa situação através de sua solidariedade, demonstrada e evidenciada na manhã da Páscoa. Páscoa é o não de Deus a sofrimento, morte, ignomínia, expressos no Cristo crucificado, e seu sim incondicional à vida como ela se manifesta em vida, paixão, morte e ressurreição de Jesus de Nazaré. Essa descoberta significou para Lutero liberdade, libertação de seus temores e angústias. Na Epístola de São Paulo aos Gálatas, verificou que liberdade, libertação é ELEUTHERIA, no grego utilizado por Paulo. No final do Debate de Heidelberg, onde expôs sua Theologia Crucis, o falar do Deus crucificado, escreveu carta a amigo e assinou-a como Martinus Eleutherius, Martim Liberto pelo evangelho do Deus crucificado. Daí em diante, o “th” da Eleutheria passou a substituir o “d” de seu sobrenome, que paulatinamente foi se transformando em programa. A descoberta da diferença do “d” e do “th” foi para nós de profunda importância nos conturbados anos da década de 1970 na América Latina. Contextos determinam nossa leitura da história.
     “D” e “th” acompanham nossa exposição da vida e da obra de Lutero. Por causa dessas letras não podíamos ficar na exposição da vida do jovem Lutero, como fizeram muitas biografias a ele dedicadas. Em muitos sentidos, o “velho” Lutero volta a ser “Luder”, perdendo o ímpeto contido no “th” de “Luther”. O “velho” Lutero é paradigmático para quem está vivo, pois nos ensina a verificar que, enquanto seres humanos, somos contraditórios. Um de seus contemporâneos, Martin Bucer, expressou essa contraditoriedade em Lutero ao afirmar que foi assim que Deus no-lo concedeu. Ao expressá-lo, Bucer compreendeu o que Lutero percebera ao redescobrir a centralidade do Deus crucificado: só conseguimos viver de fato quando descobrimos que Deus nos aceita assim como somos, gratuitamente por causa, propter, de Cristo. Também ele, no fundo, não passou de um pecador agraciado.
     Em nosso texto, optamos por não trabalhar com notas de rodapé repletas de referências. Sempre que possível, as citações seguem a tradução de obras de Lutero, como publicadas nos 12 volumes de Martinho Lutero, Obras Selecionadas, editados até aqui pelas Editoras Concórdia e Sinodal. Quando isso não foi possível, traduzimos as passagens como reproduzidas na Edição de Weimar das obras completas de Lutero. Outras fontes utilizadas estão listadas no final do texto, onde o leitor também encontrará referências bibliográficas complementares. Sabemos que o texto a seguir não traz novidades para especialistas. Que eles nos perdoem. Aos demais desejamos que possam mergulhar na História.

Martin N. Dreher

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Quando nada mais resta

Enquanto avançamos aos tropeços, quilômetros a fio, vadeando pela neve ou resvalando no gelo, constantemente nos apoiamos um no outro, erguendo-nos e arrastando-nos mutuamente. Nenhum de nós pronuncia uma palavra mais, mas sabemos neste momento que cada um só pensa em sua mulher. Vez por outra olho para o céu onde vão empalidecendo as estrelas, ou para aquela região no horizonte em que assoma a alvorada por trás de um lúgubre grupo de nuvens. Mas agora meu espírito está tomado daquela figura à qual ele se agarra com uma fantasia incrivelmente viva, que eu jamais conhecera antes na vida normal. Converso com minha esposa. Ouço-a responder, vejo-a sorrindo, vejo seu olhar como que a exigir e a animar ao mesmo tempo; e – tanto faz se é real ou não a sua presença – seu olhar agora brilha com mais intensidade que o sol que está nascendo. Um pensamento me sacode. É a primeira vez na vida que experimento a verdade daquilo que tantos pensadores ressaltaram como a quintessência da sabedoria, por tantos poetas cantada: a verdade de que o amor é, de certa forma, o bem último e supremo que pode ser alcançado pela existência humana. Compreendo agora o sentido das coisas últimas e extremas que podem ser expressas em pensamento, poesia – e em fé humana: a redenção pelo amor e no amor! Passo a compreender que a pessoa, mesmo que nada mais lhe reste neste mundo, pode tornar-se bem-aventurada – ainda que somente por alguns momentos – entregando-se interiormente à imagem da pessoa amada. Na pior situação exterior que se possa imaginar, numa situação em que a pessoa não pode realizar-se através de alguma conquista, numa situação em que sua conquista pode consistir unicamente num sofrimento reto, num sofrimento de cabeça erguida, nesta situação a pessoa pode realizar-se na contemplação amorosa da imagem espiritual que ela porta dentro de si da pessoa amada. Pela primeira vez na vida entendo o que quer dizer: os anjos são bem-aventurados na perpétua contemplação, em amor, de uma glória infinita...

       
Texto extraído do Livro Em busca de sentido, P. 54
Maiores informações de como adquirir o Livro em ...
http://www.editorasinodal.com.br/produto/91523/em-busca-de-sentido