Martin N.
Dreher
De Luder a Lutero - Uma biografia
Elaborar a biografia do reformador Martim Lutero, sendo brasileiro e
residindo no hemisfério sul do planeta, pode parecer um
empreendimento um tanto temerário. Você está longe das grandes
bibliotecas e dos grandes centros de pesquisa da história do século
XVI. É verdade que, no século XXI, há a possibilidade de
conectar-se via rede mundial de computadores e em poucos instantes
ter acesso a bibliotecas e a centros de pesquisa. Por outro lado,
faltam o contato direto, o cheiro dos arquivos, a proximidade
geográfica com locais e localidades, sentir geografia, relevos,
depressões, vale de rios, lagos. Por isso o que vai descrito e
escrito nas páginas que seguem é uma tentativa de introduzir o
leitor não europeu em contextos, cheiros, seres humanos distantes
dos surenhos.
Quem
escreve, e principalmente o historiador que escreve e que não pode
negar que também é teólogo e, mais especificamente, luterano, deve
confessar que se aproxima da tarefa com preconceitos, com conceitos
prévios, com os quais estará lutando ao longo de todo o seu texto.
Nasci e cresci em família luterana, descendendo de teólogos
luteranos, de professores, de artesãos, de camponeses, sempre
luteranos. Fui formado em seminário menor luterano e em faculdade de
teologia luterana, fiz pós-graduação, orientado por luterano,
lecionei em centro de formação luterano. Cedo ouvi falar de Lutero,
pois dele recebera o primeiro de meus prenomes, pois nascera em 10 de
novembro, data do nascimento do reformador. Ter e reconhecer
preconceitos, porém, auxilia o historiador a buscar imparcialidade
na parcialidade. É o que pretendemos.
Quando
li a biografia escrita por Heiko A. Oberman, Luther: Mensch
zwischen Gott und Teufel (Lutero: Pessoa entre Deus e o Diabo),
tomei conhecimento da grafia “Luder” para o sobrenome do
estudante que se matriculara para estudo na Universidade de Erfurt.
Em meu dialeto legado por imigrantes alemães que se estabeleceram no
Rio Grande do Sul a partir de 1824, “Luder” podia designar, em
sua forma mais amena, o “vagabundo”, mas também a pessoa de
conduta altamente reprovável. Foi a partir desse meu pano de fundo
linguístico que comecei a ler Lutero de forma mais intensa e a
procurar entender existencialmente o que significara para ele a
descoberta do Deus crucificado, principalmente depois de encontrar em
Bartolomé de las Casas a afirmação de que aquilo que os espanhóis
estavam fazendo em relação aos indígenas era pior do que a heresia
dos luteranos, pois esses não negariam o Deus crucificado. De fato,
na busca por um Deus misericordioso, Lutero percebeu no Cristo
crucificado o rosto de Deus voltado para o ser humano e para a
criação. Não há outra forma de reconhecermos quem e como é Deus
a não ser naquilo que Deus nos mostrou, revelou a seu respeito, ao
contrário do que ele é na ignomínia, no escândalo, na morte
dolorosa e injusta do Cristo crucificado. Deus tem o rosto do
crucificado. O Cristo crucificado é o rosto de Deus voltado para o
ser humano e para a criação, que clamam e gemem por redenção. Não
reconhecer Deus na cruz e no sofrimento é não saber nada do
evangelho. Saber desse Deus é poder olhar para onde ele olha, para
baixo, e ver o que ele vê: sofrimento, morte, ignomínia, cruz e
libertar quem se encontra nessa situação através de sua
solidariedade, demonstrada e evidenciada na manhã da Páscoa. Páscoa
é o não de Deus a sofrimento, morte, ignomínia, expressos no
Cristo crucificado, e seu sim incondicional à vida como ela se
manifesta em vida, paixão, morte e ressurreição de Jesus de
Nazaré. Essa descoberta significou para Lutero liberdade, libertação
de seus temores e angústias. Na Epístola de São Paulo aos Gálatas,
verificou que liberdade, libertação é ELEUTHERIA, no grego
utilizado por Paulo. No final do Debate de Heidelberg, onde expôs
sua Theologia Crucis, o falar do Deus crucificado, escreveu
carta a amigo e assinou-a como Martinus Eleutherius, Martim
Liberto pelo evangelho do Deus crucificado. Daí em diante, o “th”
da Eleutheria passou a substituir o “d” de seu sobrenome, que
paulatinamente foi se transformando em programa. A descoberta da
diferença do “d” e do “th” foi para nós de profunda
importância nos conturbados anos da década de 1970 na América
Latina. Contextos determinam nossa leitura da história.
“D”
e “th” acompanham nossa exposição da vida e da obra de Lutero.
Por causa dessas letras não podíamos ficar na exposição da vida
do jovem Lutero, como fizeram muitas biografias a ele dedicadas. Em
muitos sentidos, o “velho” Lutero volta a ser “Luder”,
perdendo o ímpeto contido no “th” de “Luther”. O “velho”
Lutero é paradigmático para quem está vivo, pois nos ensina a
verificar que, enquanto seres humanos, somos contraditórios. Um de
seus contemporâneos, Martin Bucer, expressou essa contraditoriedade
em Lutero ao afirmar que foi assim que Deus no-lo concedeu. Ao
expressá-lo, Bucer compreendeu o que Lutero percebera ao redescobrir
a centralidade do Deus crucificado: só conseguimos viver de fato
quando descobrimos que Deus nos aceita assim como somos,
gratuitamente por causa, propter, de Cristo. Também ele, no
fundo, não passou de um pecador agraciado.
Em
nosso texto, optamos por não trabalhar com notas de rodapé repletas
de referências. Sempre que possível, as citações seguem a
tradução de obras de Lutero, como publicadas nos 12 volumes de
Martinho Lutero, Obras Selecionadas, editados até aqui pelas
Editoras Concórdia e Sinodal. Quando isso não foi possível,
traduzimos as passagens como reproduzidas na Edição de Weimar das
obras completas de Lutero. Outras fontes utilizadas estão listadas
no final do texto, onde o leitor também encontrará referências
bibliográficas complementares. Sabemos que o texto a seguir não
traz novidades para especialistas. Que eles nos perdoem. Aos demais
desejamos que possam mergulhar na História.
Martin N. Dreher
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